Gordon Matta-Clark, o tempo e o espaço

Patternity_HolePunch_GordonMattaClark

Figura 1: Conical Intersect, 1975

“Here is what we have to offer you in it’s most elaborate form… confusion guided by a clear sense of purpose”

Gordon Matta-Clark (Matta-Clark et al., 2014)

Quando Gordon-Matta-Clark (1943-1978) morre aos 35 anos e se torna numa figura de culto, toda a reflexão é pouca para tentar compreender a sua complexidade. Podemos considerar que o início e o fim de um artista serão à partida os seus momentos mais excitantes de criação artística, uma vez que em ambos os estádios não há muito a perder. Que dizer então de um artista cujo início e fim acontecem num intervalo tão curto? Sem dúvida que a sua necessidade incessante de criar não o permitiu acomodar-se no absentismo de produção artística. A verdade é que a obra de Matta-Clark é de tal forma rica e complexa que facilmente se inicia uma qualquer reflexão sobre a arte actual recorrendo aos seus building cuts, aos seus trabalhos com a comunidade, à sua intervenção na cidade, ao seu activismo politico, aos seus rascunhos aparentemente desconexos, às suas experimentações gastronómicas ou à sua preocupação com o arquivo.

Começando pelo início do artista, poucas hipóteses teria Gordon de escapar à sua genética. A sua relação com o seu pai, o importante pintor surrealista chileno Roberto Matta, foi sempre uma relação de ausências após ter deixado Anne Clark a criar sozinha os gémeos recém-nascidos (Gordon e John Sebastian, que também faleceu demasiado cedo, facto que naturalmente foi de uma grande magnitude na vida de Gordon) para ir para a Europa. Gordon continuou no entanto a contactar com o círculo de amigos do pai, por parte da sua mãe que tinha uma relação de amizade com a equipa de surrealistas recém-emigrada para Nova Iorque, entre eles André Breton e Marcel Duchamp. Gordon viveu provavelmente toda a sua vida em busca do reconhecimento do seu pai, embora o negasse, uma vez que na sua família disfuncional, o pai não seria aquela reconfortante figura que se espera, mas sim a desafiante, aquela que não se contentaria com qualquer resultado. Na verdade, Gordon não só buscava o seu reconhecimento como possivelmente o tentaria superar. De certa forma, tentou seguir as pisadas do pai na arquitectura (Roberto Matta trabalhou para Le Corbusier e nutria uma grande admiração pela arquitectura e pelos arquitectos que conhecia) quando se candidatou à Universidade de Cornell em 1962 para frequentar o curso de arquitectura.

No início dos 1970’s Matta-Clark desenvolveu o conceito de anarchitecture, uma ode aos vazios e aos abandonados que teve adeptos das mais variadas áreas, como Laurie Anderson, Tina Girouard, Carol Goodden ou Suzanne Harris. Em 1974 é organizada uma exposição com o nome do grupo e todos participaram anonimamente, reforçando a ideia de trabalho colectivo.

 

 Uma questão de espaço

 A obra de Gordon Matta-Clark é sobretudo uma história sobre o espaço, o cheio e o vazio, a comunidade e as políticas. Mas este espaço não é geográfico, as politicas nada têm a ver com partidos, as comunidades são as de qualquer lugar. Matta-Clark foi um artista deslocado de qualquer sítio em particular, de ascendência chilena, francesa, espanhola e basca (da parte do pai), e viajando sempre um pouco por todo o mundo. “If anything emerges to cut up, I’ll go anywhere anytime”, escreveu numa carta ao seu advogado em 1975 (Moure, 2006). Se por um lado, esta afirmação prova o seu interesse por condições diversas e pelo desconhecido, também nos dá pistas sobre a sua aversão ao estático. A provocação do movimento a estruturas estáticas era, para Matta-Clark, algo de fascinante. Mas ele próprio era um indivíduo de uma energia invulgar, o que justifica a sua obra extensa numa vida tão curta.

Quando se escreve sobre um artista que já morreu, sobretudo quando quase todo o material ensaístico é póstumo, corremos sempre o risco de especular demais. O único material que temos disponível de Matta-Clark são, essencialmente, registos. São eles entrevistas (poucas), apontamentos, esboços, testemunhos, vídeos e fotografias. A sua obra vive, essencialmente, do seu arquivo, uma vez que praticamente todos os objectos que produziu já não existem e toda a sua obra é construída através de experiências. A sua relação com o espaço e com os objectos é essencialmente uma relação de efemeridade e, por isso, os museus e galerias demoraram até encontrar potencial expositivo na obra de Gordon Matta-Clark. Mas isso nunca foi um problema para Gordon porque as características do seu trabalho também não se ajustavam ao espaço hermético de um cubo branco.
03-food-culture.w750.h560.2x

Figura 2: Gordon Matta-Clark no restaurante Food

Preferia a rua. De tudo o que podemos dizer sobre Matta-Clark, o mais seguro para não se especular, é que ele tinha uma imensa consciência social. Esta característica é clara e transparece em toda a sua obra de uma forma realmente genuína. Foi um verdadeiro militante de uma filosofia de comunidade, contrariando a tendência para o estado de isolamento no espaço urbano e suburbano e, por isso, foi um dos principais impulsionadores da criação do bairro de SoHo de Nova Iorque tal como o conhecemos hoje. Foi lá que abriu o restaurante Food em 1971 (fig.2), juntamente com Carol Goodden, um local onde se servia comida, naturalmente, mas também um lugar que deu trabalho a artistas, que reunia a comunidade local, que dava espaço a performances, que permitia a exploração artística em todos os possíveis sentidos. Matta-Clark organizou uma série denominada Sunday Night Chef Dinners que colocava os artistas no papel de cozinheiros por uma noite. Donald Judd, Robert Rauschenberg, Keith Sonnier, Richard Landry ou Ítalo Scanga são alguns dos nomes que se sabe terem cozinhado neste ciclo. (Lee, 2000, p.71) É compreensível que, dado a inexperiência da maioria dos artistas no papel de cozinheiro, o resultado nem sempre era saboroso, privilegiando o aspecto visual e sensorial.

Em 1973 Matta-Clark comprou lotes de 25 a 75 dólares em Queens e Staten Island, completamente inúteis e sem qualquer valor comercial (designados espaços residuais), organizou-os em mapas e fotografou-os. Chamou a esta obra Fake Estates e serviu-se dela para criticar a aleatoriedade na atribuição de parcelas de uma cidade. Foi mais um manifesto contra o espaço privado que, na perspectiva de Gordon, tanto servia para manter os outros fora como para enclausurar as pessoas dentro, guiando a sociedade para um isolamento doentio. (Russi et al., 2003, p.148)

Foi também com esta orientação que abriu os espaços privados para a rua, com os seus building cuts. Em Conical Intersect, 1975 (Fig.1), abriu um túnel num edifício central de Paris que, dada a sua ostensividade, quase parecia um portal para o espaço que, embora abandonado na altura, fora construído com o intuito de ser privado. Já em Office Barroque, 1977, os cortes arabescos num edifício de cinco andares em Antuérpia, romperam os limites de cada piso dentro do mesmo edifício, num recorte quase cubista. (Enguita, 1993, p.245 e p.290)

 

A influência de Duchamp

 

Anarchitecture attempts to solve no problem (…)

Gordon Matta-Clark, num dos seus apontamentos (Enguita, 1993, p.108)
 

Il n’y a pas de solution parce qu’il n’y a pas de problème.

Marcel Duchamp

Não será de estranhar que um artista nascido e criado no círculo surrealista Nova Iorquino na década dos 1940’s e 50’s tenha sido de certa forma influenciado pela obra de Marcel Duchamp. Gordon era inclusivamente afilhado de Alexina “Teeny” Sattler (Lee, 2000, p. 269, nota 4), na altura casada com Duchamp. Sem nunca o admitir publicamente (e não teria de o fazer), Gordon deu incontáveis provas no seu trabalho e na sua vida de que o seu contacto com Duchamp foi fundamental na construção da sua identidade enquanto artista, ou antes, enquanto indivíduo. E aqui a palavra indivíduo adquire o significado duchampiano que o eleva para além da simplicidade de se existir. Duchamp preferia ser chamado de indivíduo ao invés de artista e, nesta posição, não estaria a menosprezar a condição de artista, mas sim a valorizar o facto de conseguir ser indivíduo. Desta forma, levanta questões sobre o devir, sobre o ser – conceito inventado pelos humanos, no qual ele não acredita – e dá uma lição sobre a banalidade. O facto de existirmos não nos eleva a indivíduos, uma vez que existir é característica das coisas que apenas são. António Olaio, no seu estudo sobre o indivíduo chez Duchamp aplicado à reflexão na arquitectura, refere que a arte é o produto da habitação e que “habitar é ser-se ao relacionar-se” da mesma forma que “ser-se ao relacionar-se com o habitar é também ser-se ao relacionar-se com os outros” (Olaio, 2005, p.26). Desta forma, leva-nos a reflectir na casa como representação da ideia de indivíduo, permitindo pensar a ideia de espaço domestico como espaço de habitar e não apenas de existir.
gordon-matta-clark-splitting

Figura 3: Splitting, 1974

Quando em 1974 Gordon Matta-Clark divide a meio uma casa familiar abandonada em Englewood, New Jersey (Splitting, 1974, 322 Humphrey Street – fig.3), a sua anterior arquitectura banal, própria das coisas que apenas existem, transformou-se em objecto de reflexão sobre questões de “exterior e interior, urbano e suburbano, público e privado, violência e iluminação” (Lee, 2000, p.xiii, tradução livre). Este espaço muito pouco brilhante inicialmente construído para habitar, converteu-se em atracção artística, com excursões de amigos de Gordon e curiosos a viajar de Nova Iorque para ver, podemos chamar com todas as letras, este readymade. E pouco tempo depois foi demolido.

O facto de todo o trabalho de Gordon Matta-Clark existir em resíduo, seja ele em fotografia, vídeo, relatos ou apontamentos, lembra a falta de interesse de Duchamp em relação ao original das suas obras, muitos deles entretanto também perdidos. Segundo Duchamp, não existe interesse no original de um readymade, quando o que interessa realmente é o conceito. A prova disso é o facto de ter produzido múltiplos das suas obras. No caso de Gordon, o que talvez em Splitting tenha sido fruto de uma oportunidade (o edifício iria ser demolido, portanto o proprietário não se importaria de ver a sua casa dividida), tornou-se uma importante relação com a efemeridade e o arquivo. Splitting só estaria completo quando a casa fosse demolida, tal como La mariée mise à nu par ces celibataires, même, 1915-1923, de Duchamp só estaria completo quando, por acção do acaso, se estilhaçava num transporte para uma exposição em 1926. (Jonckheere, 1999, p.26)

Gwendolyn Owens, ex-directora assistente do Canadian Centre for Architecture (CCA), onde se situa o arquivo de Gordon Matta-Clark, sugere na introdução do livro Art Cards/Fichas de Arte que Gordon terá conhecido e até mesmo manuseado a Green Box de Duchamp (Matta-Clark, 2014, p.23), na qual constavam noventa e quatro notas para a obra The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even (The Large Glass) que ocupou oito anos da sua vida a ser executada. Escrever notas em pequenos cartões não é, naturalmente, nada de original num artista, no entanto não deixa de ser curiosa a semelhança da natureza das notas de Duchamp às notas que Gordon Matta-Clark escrevia em índex cards ou nos seus cadernos.

 

Razor blades which cut well and razor blades which no longer cut

The first have “cuttage” in reserve

Use this “cuttage” or “cuttation”

Marcel Duchamp em The Green Box, 1934

Not as much an architecture

As spacism?

Or space ification

Gordon Matta-Clark num dos seus cartões (Matta-Clark, 2014, p.305)

Talvez não seja tão importante saber se Gordon conheceu ou não a Green Box. Uma conclusão que se pode tirar da análise dos apontamentos de Matta-Clark e Duchamp é a de que ambos tinham uma insaciável necessidade de escrever e as suas obras não teriam qualquer significado sem as suas palavras. As suas palavras são as escritas em apontamentos e em ensaios assim como as que eram ditas em entrevistas e, principalmente, as que eram comunicadas verbalmente entre amigos e na comunidade. Embora fosse um indivíduo com uma enorme cultura e falasse confortavelmente sobre vários filósofos e intelectuais, Jane Crawford, viúva de Gordon Matta-Clark diz não ter qualquer memória de o ver sentado com um livro na mão. Os serões eram passados em convívio com amigos, discutindo todo o tipo de questões, assistindo a uns eventos, participando noutros. Tal como Duchamp, a obra de Matta-Clark era sustentada pela persona que ele vivia na sua própria vida. António Olaio diz-nos que “o aparente carácter de não-arte da arte de Duchamp advém sobretudo desta sua capacidade de se fundir com as coisas” (Olaio, 2005, p.120).

Não podemos confundir este carácter de não-arte com uma anti-arte. Duchamp explica a diferença entre um anti-artista ou anartista:

For me there is something else in addition to yes, no or indifferent – that is, for instance – the absence of investigations of that type. . . . I am against the word ‘anti’ because it’s a bit like atheist, as compared to believer. And the atheist is just as much of a religious man as the believer is, and an anti-artist is just as much of an artist as the other artist. Anartist would be much better, if I could change it, instead of anti-artist. Anartist, meaning no artist at all. That would be my conception. I don’t mind being an anartist . . . What I have in mind is that art may be bad, good or indifferent, but, whatever adjective is used, we must call it art, and bad art is still art in the same way as a bad emotion is still an emotion.

Duchamp citado por Arturo Schwarz (Abrams, 1969, p.33)

Não é conhecido com certeza a razão do nome do grupo Anarchitecture que Gordon fundou em SoHo. Naturalmente que a ideia de anartist de Duchamp é uma das possíveis inspirações para Gordon na escolha do nome. A força do prefixo an- é, como Duchamp afirma, muito superior à do prefixo anti- quando o que se pretende é algo muito próximo à indiferença. Indiferença, acima de tudo, aos rótulos – ao de artista nomeadamente. E tudo nos leva de novo ao conceito de indivíduo. Duchamp e Gordon são ambos um anartista ou um indivíduo.

Outra característica notável destes anartistas, além dos registos das suas palavras, são as suas actividades peculiares que por vezes a critica de arte interpreta como extra-curriculares e se esquece de referir como parte da sua obra: No caso de Duchamp, o xadrez, em Gordon, a cozinha.

And why . . . isn’t my chess playing an art activity? A chess game is very plastic. You construct it. It’s mechanical sculpture and with chess one creates beautiful problems and that beauty is made with the head and hands.

Marcel Duchamp, entrevistado por Truman Capote em Richard Avedon, Observation, Nova Iorque: Simon and Schuster, 1959, p.55.

Poderá ser incorrecto afirmar que Duchamp suspendeu a sua prática artística para se dedicar ao xadrez. Conhecendo as suas convicções, podemos interpretar a sua prática de xadrez como uma acção de arte. No máximo, poderá considerar-se que Duchamp deixou de actuar no papel de artista. Da mesma forma, a cozinha era um campo de exploração artística para Gordon Matta-Clark.

graffitti truck

Figura 4: Graffiti Truck: Alternatives to the Washington Square art fair, 1973

Mais um aspecto curioso nesta relação entre Duchamp e Matta-Clark é a relação de ambos com as instituições. Ambos viram obras suas a serem recusadas por museus e galerias e as suas formas de lidar com esta rejeição foram elas próprias parte da obra. Tanto Fountain, 1917, como Nu descendent un escalier nº2, 1912, de Duchamp foram recusadas pelas instituições no seu tempo, mas esse aspecto faz parte da obra e provou que Duchamp estava correcto naquilo que implicava no seu trabalho (Olaio, 2005, p.37 e p.67). O projecto Photoglyphs que Matta-Clark submeteu em 1973 para feira de arte anual em Greenwich Village foi também recusado e a sua resposta a essa recusa foi uma nova obra: Gordon colocou a sua carrinha – à qual chamou de Herman Meydag – à disposição da comunidade para todos participarem numa pintura colectiva. Gordon cortava pedaços da carrinha e vendia-os separadamente. Este projecto foi intitulado de Graffiti truck, Alternatives to the Washington Square art fair. (Enguita et.al.,1993, p.158 – fig.4)

A interdisciplinaridade de Gordon Matta-Clark era admirável, quebrando o limites entre performance, instalação, arquitectura, escultura, fotografia, vídeo e, como não podia faltar, a vida. Meditou sobre o espaço e o tempo, tal como Duchamp. Atrevo-me a dizer que Gordon poderia ser aquilo que Duchamp não teve tempo para explorar.

  

O contemporâneo

(…) contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.

Giorgio Agamben, (Agamben, 2009)

Nos apontamentos de Roland Barthes quando frequentava o Collège de France, lê-se: “O contemporâneo é o intempestivo” (Agamben, 2009, pg.58). Considerando que a obra de Matta-Clark deve muito às questões do tempo, fará sentido reflectir se ele é um homem do seu tempo ou se é intempestivo. Mas a verdade é que os dois conceitos não se contradizem, uma vez que o que Barthes queria dizer com intempestivo, não significava que não pertencesse ao seu próprio tempo. “A contemporaneidade, portanto,” escreve Giogio Agamben “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias (…)” (Agamben, 2009, p.59). E é esta distância que faz o contemporâneo percepcionar a escuridão própria de cada tempo.

O capítulo que serve de conclusão ao livro Object to be Destroyed (Lee, 2000, p.210) tem o seguinte título: Conclusion: To Be Contemporary. Pamela M. Lee inúmera aqui algumas das características de Gordon Matta-Clark:

All at once, Matta-Clark was the most Dionysiac of dancers; the sternest architectural critic; a punster; the most inventive (or, alternately, horrible) of cooks; a speculator; a child of surrealism; a Buddhist; a wastrel; a Marxist; a rich kid; a savior of builders; an infinite charmer; a student of garbage; a physical, life-affirming force; a man whose life was marked by illness, guilt and loss.

A forma de saber se Matta-Clark foi um verdadeiro contemporâneo segundo Agamben, passa por ponderar se a sua obra seria a mesma num outro tempo. Lendo os seus apontamentos, conhecendo a sua obra e ouvindo testemunhos de alguém que o conhecia, conseguimos perceber que não, a sua obra não seria a mesma, porque a sua obra é intemporal mas, ao mesmo tempo, tem uma relação rara com o seu próprio tempo. Aquelas obras fizeram sentido naquele determinado tempo e contexto social e histórico, mas continuam a fazer sentido hoje porque tocam em matérias intemporais de tempo, espaço, habitação e sociedade.

Podemos também tentar medir a sua contemporaneidade pela notável influência que Matta-Clark teve na arte já depois de morrer. Principalmente na arquitectura, mas também em artistas como Rirkrit Tiravanija, Olafur Eliasson ou Tobias Putrih são apenas exemplos de como a obra de Matta-Clark é uma obra de todos os tempos, que foge de rótulos e procura a origem (a arké, de que Agamben fala – Agamben, 2009, p.69). Este seu legado é especialmente relevante quando sabemos que muitos dos artistas que vêm nele uma clara influência e muitos dos que escrevem hoje sobre o seu trabalho apenas conhecem a sua obra a partir do seu resíduo. Poucos viram realmente alguma das obras de Matta-Clark e, no entanto, por alguma razão, a riqueza do seu trabalho passou através das inexpressivas fotografias que, inevitavelmente, matam qualquer obra de base experiencial.

Aquele que dedica a sua curta vida a romper barreiras, a testar estabilidades e a causar acidentes, procura claramente uma ruptura no seu tempo. Aceita, no entanto, esse tempo; de outra forma nunca poderia exercer qualquer poder nele.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MATTA-CLARK, Gordon, CRAWFORD, Jane, OWENS, Gwendolyn & BERRÍOS, Maria – Art Cards / Fichas de Arte. Nova Iorque: Sangria Publishers, 2014.

MOURE, Gloria (Ed.) – Gordon Matta-Clark: Works and Collected Writings. Barcelona: Poligrafa, 2006.

LEE, Pamela M. – Object to be Destroyed, The Work of Gordon Matta-Clark. Massachusetts: Massachusetts Institute of Technology, 2000.

OLAIO, António – Ser um Indivíduo chez Marcel Duchamp. Porto: Dafne Editora, 2005

ENGUITA, Nuria & GUARDIOLA, Juan – Gordon Matta-Clark. Valência: Instituto Valenciano de Arte Moderno, 1993

AGAMBEN, Giorgio – O que é o contemporâneo? e outros ensaios; (tradutor Vinicius Nicastro Honeski). Chapecó, Brasil: Argos, 2009

RUSSI, Judith, KIRSHNER, Russi & KRAVAGNA, Christian – Gordon Matta-Clark. Corinne Diserens (Ed.). Londres: Phaidon Press Limited, 2003

ABRAMS, H, N. – The Complete Works of Marcel Duchamp. Nova Iorque, 1969

JONCKHEERE, Lieven – According to Marcel Duchamp, La mariée mise à nu par ses célibataires, même and the ready-made. In: The Letter, nº15, 1999

A velocidade futurista e a velocidade digital

1

A verdade está na velocidade, na máquina, na violência e na guerra. Tudo isto é celebrado por Filippo Tommaso Marinetti, poeta italiano e convicto futurista. Nos onze artigos que constroem o seu Manifesto Futurista, Marinetti encaminha-se para uma estetização da política. Walter Benjamin, numa análise deste fenómeno na política fascista, cita Marinetti:
 
A guerra é bela, porque graças às máscaras de gás, aos lança-chamas e aos blindados, funda o domínio do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela, porque inaugura o sonho da metalização do corpo humano. (…) A guerra é bela, já que cria arquitecturas novas como as dos tanques, as das esquadrilhas formadas geometricamente, as das espirais de fumo nas aldeias incendiadas e muitas outras… Poetas e artistas futuristas!… Recordai-vos destes princípios fundamentais de uma estética da guerra para que iluminem o vosso combate por uma nova poesia, por umas artes plásticas novas! 2
 
Perante a leitura de um manifesto tão aceso e uma análise funda sobre o futurismo italiano, é difícil apontar um resto de sarcasmo do autor em qualquer um dos artigos. A guerra é mesmo bela, a destruição e a violência são mesmo valores a adoptar. A beleza da velocidade é, para Marinetti, a beleza de todo o processo mecânico de um automóvel a funcionar. É tão simples quanto isto.
 
Pelo contrário, se em Marinetti o ideal estético era um fim em si mesmo, em Karl Marx e Friedrich Engels, a arte era preconizada como um instrumento de propaganda. Ao longo da história, ao designer, artista, cinematógrafo, arquitecto, foi muitas vezes atribuído um papel político: não é a estetização da política como no futurismo, mas a politização da estética, também teorizada por Walter Benjamin. O uso do cinema, da arquitectura monumental e austera e outras manifestações artísticas de propaganda serviam bem o comunismo de Marx e Engels.
 
Cem anos depois do Manifesto Futurista, a velocidade é novamente glorificada, ainda que com uma nova abordagem, pelo Digital Humanities Manifesto3. Aqui pode ler-se a velocidade em duas formas distintas: a velocidade exponencial da corrente de informação disponível e a velocidade estonteante da alteração de costumes e valores a que estamos sujeitos nesta era digital. Quanto a esta última, convém seguir o conselho deixado em Tao Te Ching: Lida com a dificuldade quando ela ainda é fácil, lida com o imenso quando ele ainda é pequeno.4 Na geração transitória que hoje vive, a recusa de penetrar na cultura digital resulta no que futuramente será entendido como analfabetismo.
 
Em relação à velocidade da corrente de informação democraticamente disponível, os seus efeitos são já claramente favoráveis ao aumento do conhecimento. Por outro lado, ainda não é suficientemente intuitiva a busca pelo saber nos meios digitais. O papel do designer é essencial para este processo ser mais fácil, como escreve Clement Mok: O Design, no sentido lato, é quem permite a era digital – é um processo que cria ordem no caos, que torna a tecnologia usável para o negócio. 5
 
 
 
 


1 Le Figaro nº51, onde Marinetti publicou o Manifesto Futurista.
2 Filippo Tommaso Marinetti citado por Walter Benjamin em A Obra de Arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica (Assírio & Alvim, 2004), traduzido para português por João Barrento.
3 Digital Humanities Manifesto 2.0 é o resultado de nove seminários decorridos na UCLA (University of California, Los Angeles) ao longo de 2008.
4 Tradução a partir da versão inglesa do texto originalmente escrito em chinês (no ano 6 a.C, segundo a tradição), citada por Josh Greenberg no seu blog: Deal with the difficult while it is yet easy. Deal with the great while it is yet small.
5 Tradução a partir do original em inglês: Design, in its broadest sense, is the enabler of the digital era – it’s a process that creates order out of caos, that renders technology usable to business.

A representação literária da acção dos media nas sociedades actuais

A REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DA ACÇÃO DOS MEDIA NAS SOCIEDADES ACTUAIS:
Os casos de Ballard, Orwell e Huxley

 

Não se pode falar em simulacros sem se recorrer a algumas contradições. Pode ser para uns uma representação da realidade. Para Baudrillard, isso não faz todo o sentido. Uma cópia do real é um signo; um simulacro é como uma cópia da cópia e torna-se uma nova realidade: a hiper-realidade.1

Em Sophist, Platão referia-se a dois passos da reprodução: fiel e intencionalmente distorcida (e neste caso falaria em simulacro). Baudrillard considera quatro etapas: reflexão básica da realidade, perversão da realidade, pertença da realidade e simulacro, que já não tem qualquer relação com a realidade. Se o real corresponde à imagem que tenho dele, é verdadeiro. Senão é ilusão. Depois de ter caído da cadeira, Salazar esteve ainda dois anos a ser enganado. Não houve coragem para anunciar que já não tinha um país na mão. Durante este tempo, o líder viveu num simulacro bem encenado, com manchetes de jornais fictícias incluídas. No seu pequeno mundo, o poder ainda era dele.

Já não existem signos porque eles já não representariam o real. Pode dar-se um exemplo comum que o comprova. Há muitas crianças que vivem nas cidades que nunca viram uma galinha. Imaginemos que os pais de uma delas a levam para uma viagem ao interior. A criança espanta-se com a quantidade de símbolos que vê, e chama os pais para irem ver um Knorr. Para ela, a galinha é um símbolo e o logótipo daquela marca é a realidade.

Paul Virilio (n.1932) pensa de outra forma. O momento em que o mundo passa a viver a partir dos signos, interpretando-os como realidade, não dá origem ao simulacro, mas a uma substituição, a substituição do real pelo virtual. 2 E isto culmina num acidente, que ele considera ser inerente à invenção. A locomotiva, a partir do momento em que existiu, deu origem também às possibilidades de descarrilamento.

O acidente é o diagnóstico da tecnologia. 3

Para Virilio, vivemos num tempo onde o espaço não é fundamental. É um espaço de tempo e não um espaço com tempo. As coisas não são coisas, são representações delas. Não procuramos um conhecimento que sirva por si só; é necessário que eles sejam realmente proveitosos para trocar e aplicar (é escusado aprender latim hoje).

Os mass media são eficazes laboratórios de simulacros. Criam hiper-realidades complexas e o indivíduo, enquanto membro de massa, absorve a mensagem. E a velocidade é um catalisador neste consumo mediático. Se num curto intervalo de tempo é apresentado a alguém um número imenso de objectos, cada uma das experiências (a observação de cada um dos objectos) tem pouco tempo de exposição. E por isto está mais apto a esquecer cada uma das experiências tidas.

É esta a acção dos mass media: reduzir o tempo de exposição (as 24 frames por segundo do cinema) e isto torna a analepsia um fenómeno político. É mais fácil exercer controlo sob a massa se ela não compreender o que se lhe expõe. Estamos numa altura onde tudo desaparece e o tempo que dedicamos às experiências torna-se inútil porque, na verdade, não absorvemos realmente nenhuma delas. Este fenómeno é contra-cultura e transforma toda a experiência em entretenimento. Toda esta lavagem dos novos media é, para Virilio, exercida no escuro, sem que ninguém se aperceba.

Em Simulacros e Simulações, Baudrillard define três tipo de simulacros: os naturais, os produtivos e os de simulação. O primeiro é o mais simples, assente na imagem, na representação da natureza. À segunda corresponde a ficção científica: baseados na energia, na força, na sua naturalização pela máquina e em todo o sistema de produção […] (O desejo faz parte das utopias relativas a esta categoria de simulacros) [151]. O último é a hiper-realidade. E para criar estes simulacros, Baudrillard não acredita que a ficção científica seja ainda capaz.

A ficção científica sempre falou de simulacros, mas jogava com o duplo, com a dobragem ou o desdobramento artificial ou imaginário, enquanto que aqui o duplo desapareceu, já não há duplo, está-se sempre noutro mundo, que já não é outro, sem espelho nem projecção nem utopia que possa reflecti-lo – a simulação é intransponível, inultrapassável, baça, sem exterioridade. [155]

O tópico do acidente é tão ou mais visível na ficção científica como o do simulacro. As utopias negativas são construídas de acidentes e nada mais. Como Virilio defende, em tudo está contido o acidente, e esse será o culminar da história de ficção científica. Não há utopia sem velocidade; a velocidade da tecnologia, o avançar de tudo debaixo dos nossos olhos.

Analisa-se então um conjunto de três obras de autores de ficção científica (uns mais conformados com a etiqueta que outros) que parecem comprovar as teses de Jean Baudrillard e Paul Virilio. São eles Crash (de J.G. Ballard), Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (de George Orwell) e Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley). São três livros que prevêem um futuro sombrio para o indivíduo enquanto parte de uma massa. Três mundos criados onde o simulacro é total, e o acidente inevitável.

CRASH
J.G.BALLARD
(1973)

Um homem nunca deixa de ser dependente dos outros. A solidão e a independência não são inerentes à condição humana; são consequências de uma conduta anormal de um indivíduo enquanto ser social. E uma relação sexual é, acima de tudo, uma relação de poder. É sentir-se poderoso e apoderado, em completa dependência do outro. E é este o jogo que, de uma forma mais ou menos descarada nos movimenta: o desejo sexual é a seiva da vida. O sexo não é entre dois corpos, é uma extrapolação mental. E, neste sentido, também todas as relações de poder são relações sexuais.

Quando a relação sexual passa do desejo entre dois indivíduos, assiste-se a um fetichismo. Em Crash 4 de J.G. Ballard (1930-2009), o papel principal é o do automóvel. A história é sobre Vaughan, que prepara a sua morte com a actriz Elisabeth Taylor. Todos os acidentes anteriores ao fatal são registados por Vaughan e as fotografias passam elas a ser objectos pornográficos, mistura de mutilações, peças metálicas e sémen. E é construída uma história a partir delas, pela substituição das vítimas pela actriz, sempre. O desejo de Vaughan por Elisabeth Taylor é obsessivo, e o que ele procura no acidente perfeito é um embate de corpos, mas, neste mundo, os corpos são metálicos: Em Vaughan, o acidente de automóvel e a sua própria sexualidade tinham confluído numa união final. [30]

É este o mundo simulado em Crash, em que os automóveis são corpos, os acidentes são sexo. A vida é um ensaio da morte. O orgasmo extremo acontece no momento imediatamente antes da morte, no acidente perfeito, meticulosamente preparado durante a vida.

A verdadeira história de Crash é a penetração da paisagem mediática na mente de um indivíduo. Já em The Atrocity Exhibition (1969), Ballard reúne uma série de situações que acabam sempre no numa visão estilhaçada sobre a sociedade na influência da comunicação de massas. No mundo de Crash, o desejo da máquina , e o mundo psicótico que isso implica, não é senão o resultado de uma sexualização do tecnológico, uma ânsia de se ser máquina, indestrutível.

Tudo é hiper-funcional, é tudo uma grande máquina simulada de acidentes, tecnologia, morte e sexo. O que torna Crash diferente do resto da ficção científica, que acontece em torno do paradigma função/disfunção, é a projecção do presente no futuro segundo as mesmas forças e objectivos que a realidade. Crash não é ficção nem realidade, é uma hiper-realidade.

É interessante conhecer uma prova do simulacro de Crash pela experiência antropológica que o próprio autor teve a oportunidade de fazer, e, para isso, vou citar integralmente a descrição do acontecimento em Os Livros Ardem Mal 5: Em 1970 foi-lhe proposto pelo New Arts Laboratory de Londres a possibilidade de fazer algo nas instalações deste centro de artes. Num pavilhão enorme que fora antes um armazém de produtos farmacêuticos, existia agora um teatro, um cinema, e uma galeria de arte. Ballard irá testar ali a sua hipótese sobre a relação inconsciente entre sexo e acidente de automóvel através de uma exibição de carros destruídos. O espaço da galeria ficou ao seu dispor durante um mês e Ballard deambulou por aqueles dias por cemitérios de automóveis destruídos, comprando então três espécimes para serem entregues na galeria. Os automóveis foram instalados no espaço da galeria sem qualquer outro material associado, como se se tratasse de peças escultóricas. Um circuito interno de televisão foi também instalado de forma a que os convidados se pudessem ver enquanto circulavam em torno dos automóveis. Uma rapariga parcialmente desnudada (em topless) entrevistaria os convidados. A noite inaugural com jornalistas e escritores foi copiosamente regada com álcool. O caos depressa se instalou. O vinho era atirado sobre os automóveis, as janelas eram quebradas, a rapariga era molestada sexualmente no assento traseiro de um Pontiac. Ballard terá sido objecto de uma tentativa de agressão por parte de uma jornalista do New Society. Ao longo do mês em que a exposição esteve aberta, os automóveis foram atacados repetidas vezes, manchados com tinta branca por um grupo Hare Krishna, virados ao contrário, e os seus retrovisores e matrículas roubados. A experiência de alcance antropológico tinha sido sugestiva.

MIL NOVECENTOS E OITENTA E QUATRO
GEORGE ORWELL
(1987)

Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro 6, George Orwell (1903-1950) faz uma crítica ao estado absurdo de controlo da sociedade. É uma história de um presente disfarçado de futuro. Que fala de um regime totalitário disfarçado de democracia, desde que o Partido IngSoc, sob a liderança do ominipresente Big Brother, subiu ao poder.

A história acompanha Winston Smith (“Winston” do primeiro-ministro Winston Churchill, com “Smith”, o nome comum Americano), funcionário do Ministério da Verdade, onde altera dados ao gosto do Partido. Se a notícia for o aumento da dose semanal de chocolate para 20g por cidadão, o trabalho de Winston é apagar todas as informações que possam relembrar que a dose anterior era de 30g, e substituir pela nova versão.

Winston sofre uma série de revoluções interiores que o levam a comprar um caderno e um lápis, itens absolutamente proibidos, e de lá escrever as suas angústias. Todos os locais eram vigiados por câmaras e eram raros os cantos cegos. Era num destes ângulos mortos que Winston escrevia o que o poderia incriminar.

Encontra então Julia, também membro insatisfeito do partido externo, e recupera o folgo quando vê nela uma companheira de luta. Os dois visitam O’Brien, que se supõe ser um terceiro elemento de combate e acaba por os levar à prisão e tortura. Winston é libertado e volta a honrar Big Brother.

A reprimenda de Orwell nesta história sem final feliz é à anulação da individualidade pela constante vigia e manipulação política. Com a adulteração de factos e a preparação de discursos cuidadosos, é criado um mundo onde a confiança é total e deixa de existir um sentido crítico. É um mundo perfeitamente simulado pelos mass media que o homem enquanto massa vê como real. A memória parece desfocada e os factos nem confirmam que havia outra realidade; os factos são como o Partido os quiser. Dois mais dois pode ser cinco, se for do seu entendimento.

Winston deu com a solução do enigma. «Se ele pensar que paira, e se ao mesmo tempo eu pensar que vejo pairar, então de facto a coisa acontece.» De súbito, como um destroço de navio naufragado que viesse à tona de água, irrompeu-lhe no espírito outro pensamento: «Não acontece de facto. Nós é que imaginamos. É uma alucinação.» Mas tornou imediatamente a afundar esse pensamento. Falácia evidente. Pressupunha-se haver algures, fora da nossa consciência, um mundo «real» onde aconteciam coisas «reais». Como poderia existir, porém, esse mundo? Que conhecimento temos nós do que quer que seja, a não ser através do nosso espírito? Todos os acontecimentos ocorrem no espírito. Só o que acontece em todos espíritos acontece de facto. [279]

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO
ALDOUS HUXLEY
(1932)

No (mais ou menos) Admirável Mundo Novo 7 de Aldous Huxley (1894-1963), as crianças nascem em laboratórios. São criadas para integrarem uma sociedade altamente organizada em hierarquias e cada um tem a sua função pré-definida, aceitando-a de bom grado. Existem cinco castas, Alfas, Betas, Gamas, Deltas, e Ípsilones, cada um com as subcategorias de mais e menos. Só os indivíduos de castas altas é que são únicos: os restantes vão nascendo a partir de um ovo que vai sendo dividido, gerando dezenas de cópias genéticas.

É mesmo durante este processo que são ensinados os valores do Estado aos embriões. Cria-se uma mentalidade consumista (preferir sempre o novo ao arranjado) que funciona numa sociedade onde drogas e sexo gratuito (desde crianças) são incentivadas. Os meios de reprodução não são os mesmos, e o sexo é apenas entretenimento. É mesmo disto que o mundo de Huxley vive, do entretenimento. É totalmente feliz, uma sociedade perfeita. Não há o conceito de família ou amor; para quê? É até estranho falar destas coisas em conversa. Neste sítio onde se vive saudavelmente até aos 60, não há lugar para solitários, não faz sentido.

Numa visita a uma reserva de selvagens dois Alfas Mais encontram, no meio da selvajaria repugnante, um dos seus: Tinha-se perdido do grupo quando por ali viajava e entretanto já tinha um filho e os dois ansiavam por uma visita ao admirável mundo novo. A integração do selvagem no admirável mundo novo revelou-se um desastre e levou ao suicídio do mesmo. O selvagem (que nunca foi aceite pelos selvagens) achava aquele mundo oco, sem sentido. Culpava todos pelo sexo descomedido e acabou por ele mesmo provocar uma orgia, depois de se autoflagelar em público.

O mundo novo acontece na história no ano 632 d.F, e isto significa depois de Ford. Huxley refere-se a Henry Ford, o pai da produção em série de automóveis, e entende-se a ironia no contexto histórico do livro: A clonagem era um assunto polémico, a ficção e a realidade pareciam anular as distâncias. Faz todo o sentido a comparação de homens e automóveis numa altura em que a produção em série de indivíduos parecia tão descabida como os planos de produção de Ford. Técnica e ideologicamente, estamos ainda muito longe dos babes em proveta e dos grupos Bokanovsky [o processo de multiplicação de embriões] de semi-imbecis. Mas quando for ultrapassado o ano 600 de N.F., quem sabe o que poderá acontecer? 8

A visão de Huxley é bem mais negra que a de Orwell. No admirável mundo novo não é preciso um Big Brother. Não há uma figura central a obedecer. Orwell imaginava um regime totalitarista onde havia mais ou menos satisfeitos, mas pairava mais medo do que devoção ao poder. Todos estavam a ser vigiados porque alguém podia cometer uma infracção ao código. Huxley não prevê câmaras nenhumas; não é preciso. Não há ninguém que queira praticar o erro.Orwell tem medo de um mundo onde os livros sejam banidos. No sítio de Huxley, não se censura livros que possam ir contra a palavra do poder, o problema (e é aqui que este mundo de torna assustador) não há ninguém que os queira ler. Porque estão todos demasiado ocupados a sorver as drogas que os mantêm felizes.

Foram traçados complexos simulacros. A fusão do homem com a máquina, só assim sentir-se completo: O tempo e o espaço íntimos dum único ser humano tinham sido fossilizados para todo o sempre neste teia de lâminas de crómio e estilhaços de vidro. [Crash, 32 ]; o medo de alguém desconhecido que é omnipresente e está em todas as câmaras que lhe são impreterivelmente apontadas ; a clonagem de cabeças formatadas para a felicidade e a vida sem complicações. E todas estas histórias culminam num acidente. Uns mais evidentes que outros.

Verificam-se, então, as teses de Jean Baudrillard e Paul Virilio nos livros acima descritos. A ficção científica não é apenas uma especulação desapoiada do futuro, é, antes de mais, uma análise esmiuçada do presente: quais são as forças de hoje que se vão desenvolver. Todos estes livros fazem sentido enquanto crítica da actualidade (tanto a actualidade de cada um dos livros como a de hoje mesmo). Um livro sobre o futuro não pode interessar-nos, a não ser que as suas profecias tenham a aparência de coisas cuja realização se pode conceber.

Podemos ver as coisas de duas formas: a literatura enquanto registo e reflexão da situação (o autor é um dos indivíduos vitimados pelos mass media) ou enquanto produtor de um futuro negro para a sociedade (a literatura é um mass media). O certo é que estes autores traçam todos caminhos semelhantes e nenhum parece prever um futuro favorável à humanidade. São todas estas três histórias utopias negativas.

Parece que se espera dos escritores de ficção científica algumas qualidades de vidente. Mas é exactamente por isso que a literatura (assim como o cinema) se pode tornar (se não o é) um mass media eficaz, com todos os atributos de manipulação que convêm. A velocidade não interrompe a leitura e podemos demorar-nos o tempo que for preciso em cada palavra de um livro; Virilio não parece concordar que a literatura pode encaminhar o rebanho. No entanto, as distopias da ficção científica parecem não deixar qualquer dúvida de que não há nada a fazer: os mass media estão aí e não vão sossegar até nos transformarmos em peças de lego.

Mas a cultura de hoje pode também remar no sentido contrário: numa altura em que há cada menos a noção de emissor e receptor, é difícil conceber a ideia de vigia e controlo. Todos são observados, e, ao mesmo tempo, todos observam. Neste sentido, entendo que as previsões para o futuro mudam, agora que as forças do presente são outras.

 

1 BAUDRILLARD, Jean, Simulacro e Simulações, Relógio D’Água 1991 (edição original de 1981)
2 Entrevista de Ctheory a Paul Virilio (acedido a 23 Abril 2010): http://www.ctheory.net/articles.aspx?id=62
3 Entrevista de James der Derian a Paul Virilio (acedido a 23 Abril 2010): http://www.watsoninstitute.org/infopeace/vy2k/futurewar.cfm
4 BALLARD, J.G., Crash, Relógio D’Água 1996
5 in Acidente e simulação em JG Ballard (pré-publicação), no blog Os Livros Ardem Mal: olamtagv.wordpress.com
6 ORWELL, George, Mil Novecentos e Oitente e Quatro, Antígona 2007
7 HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Livros do Brasil
8 Prefácio de Aldoux Huxley in Admirável Mundo Novo, Livros do Brasil (pág. 17)

ensaio escrito em Fevereiro de 2010

 

Robert Breer, o Geppetto da pintura

1

“In all my work I tried to amaze myself with something, and the only way you can amaze yourself is to create a situation in which an accident can happen.” Robert Breer2

Robert Carlton Breer nasceu em 1926 em Detroit, numa casa de engenheiros. O pai dele desenhou o Chrysler Airflow e inventou uma máquina 3D para filmar a família. Breer tinha tudo para ser engenheiro, mas uma vez viu as telas de Mondrian e descobriu que queria ser artista. Foi para Paris pintar grandes figuras geométricas e abstractas que expôs na conceituada galeria Denise René.
Mas Breer não estava nem aí para as pinturas. Nelas, podia-se decifrar motores, sombras e linhas que se pareciam mover, havia uma frustração pelo objecto inanimado. Aborrecia-lhe a ideia de encerrar as pinturas nelas mesmas: estava mais interessado no processo do que no produto final. Começou por criar os flip books3 que lhe serviam como esboços para um filme. Deixou gradualmente as composições estáticas e começou a filmar estes flip books para conseguir levá-los ás galerias. A cada filme espantava-se a ele próprio. Sentia que não tinha total controlo do que se passava ali, e era isso que o fazia continuar. O primeiro filme que apresentou, em 1952, foi Form Phases I. Pintou uma série de cartões e construiu um flip book. Filmou cada frame com uma 16mm e voilà.
De volta aos Estados Unidos, onde já explodia o New American Cinema, Breer colaborou com Claes Oldenburg no filme Paty’s Birthday (1962), apresentado na Expo 70 em Osaka. No Japão, aprendeu a rotoscopia4, que viria a usar em Fuji (1974).

Breer foi pintor, filmmaker e escultor. Por esta ordem. Durante pouco tempo foi duas coisas seguidas. Depois de abraçar uma deixou gradualmente a anterior. Mas sempre teve uma visão muito coerente, como se tudo se resumisse ao mesmo. Numa entrevista em 19705, explicava que o seu último filme até à data, 69, foi revisitar as formas puras e a inocência do seu primeiro filme, Form Phases. Breer sempre foi muito consciente do que fez; afinal, é o processo criativo que lhe importa. Tem uma ideia clara dos passos que dá e porque é que se surpreender sempre com os seus resultados. Diz, por exemplo, que cria sempre os seus filmes em silêncio, a música vem depois (quando vem), para que não seja a música a ditar o ritmo da imagem. Por vezes, há coincidências, mas são mesmo isso: coincidências.

Robert Breer faleceu neste 11 de Agosto, aos 84 anos, na sua casa em Tucson, Arizona.

 

 


1 screenshot do filme 70 (1970, 16mm, cor) de Robert Breer
2 MEKAS Jonas e SITNEY P. Adams, Interview with Robert Breer Film Quarterly(1973)
3 Flip books são livros formados por uma sequência de imagens para serem folheados rapidamente, dando uma ideia de movimento.
4 Rotoscopia é uma técnica de animação em que se utiliza uma referência real sobre a qual é feita a animação.
5 LEVINE Charles, Film Culture, No. 56-57, 1973, pp. 55-68. disponível na UBU.